O que é a filosofia?

O que é a filosofia?

Por Ortega y Gazzet*

A filosofia não é (…) senão uma atividade de conhecimento teorético, uma teoria do Universo. E mesmo quando a palavra Universo, ao abrir-se como uma janela panorâmica, parece alegrar um pouco o severo vocábulo “teoria”, não esqueçamos que o que faremos não é o Universo, fingindo-nos deuses de ocasião, mas somente sua teoria.

A filosofia não é, pois, o Universo. Não é sequer o trato imediato com o Universo que chamamos “viver”. Não vamos viver as coisas, mas simplesmente teorizá-las, contemplá-las. E contemplar uma coisa implica manter-se fora dela, estar disposto a conservar entre elas e nós a castidade de uma distância. Visamos uma teoria, ou o que é o mesmo, um sistema de conceitos sobre o Universo. Nada menos, mas também nada mais. Achar aqueles conceitos que colocados numa certa ordem nos permitem dizer quanto nos parece que há no Universo. Não se trata, pois, de nada tremendo. Não obstante os problemas filosóficos, por seu radicalismo, serem patéticos, a filosofia não o é. Parece-se mais a um exercício agradável, a uma ocupação diletante. Trata-se, simplesmente, de que encaixem uns nos outros, como peças de um quebra-cabeça, nossos conceitos. Prefiro dizer isso a recomendar a filosofia com qualificações solenes. Como todas as grandes atividades humanas, a filosofia tem uma dimensão esportiva e do esporte conserva o límpido humor e o rigoroso cuidado.

Outra coisa direi que talvez possa causar espécie, mas que longa experiência me ensinou, e vale não só para a filosofia como para todas as ciências, para todo o teórico em estrito sentido. É isto: quando alguém que jamais cultivou a ciência se aproxima dela, a maneira melhor de facilitar seu ingresso e esclarecer-lhe o que se deve fazer ao fazer ciência, seria dizer-lhe: “Não busque que o que vai escutar e se lhe propõe ir pensando o ‘convença’; não o tome a sério, mas como um jogo em que se o convida para que cumpra as regras”. O estado de ânimo que essa atividade tão pouco solene produz é a melhor disposição para iniciar o estudo científico. A razão é bem simples: o pré-cientista entende por “convencer-se” e por “tomar a sério” um estado de ânimo tão firme, tão sólido, tão penetrado de si mesmo que só se pode sentir diante do que nos é mais habitual e inveterado.

Quero dizer que o gênero de convicção com que acreditamos que o sol se põe no horizonte ou que os corpos que vemos estão, com efeito, fora de nós, é tão cega, tão arraigada nos hábitos sobre que vivemos e formam parte de nós, que a convicção oposta da astronomia ou da filosofia idealista não poderá nunca comparar-se-lhe em força bruta psicológica. A convicção científica, precisamente porque se funda em verdades, em razões, não passa, nem tem para que passar, da pele de nossa alma e possui um caráter espectral.

É, com efeito, uma convicção que consiste em puro assentimento intelectual que se vê forçado por determinadas razões; não é como a fé e outras crenças vitais que brotam do âmago recôndito de nossa pessoa. A convicção científica, quando o é verdadeiramente, vem de fora – thypathen, como dizia Aristóteles –, por assim dizer, das coisas para prender-se na periferia de nosso eu. Ali, nessa periferia, está a inteligência. A inteligência não é o fundo de nosso ser. É exatamente o contrário. É como uma pele sensível, tentacular que cobre o resto de nosso volume íntimo, o qual por si é sensu stricto ininteligente, irracional. Pertinentemente o dizia Barrès: “L’intelligence, quelle petite chose à la surface de nous”. Aí está, estendida como um contorno sobre nosso ser mais interior, encarando as coisas, o ser – porque seu papel não é senão pensar as coisas, o ser – seu papel não é ser o ser, mas refleti-lo, espalhá-lo. Tanto não somos ela nós, que a inteligência é uma só em todos, mesmo que uns tenham dela maior porção que outros. Mas a que tenham é igual em todos, dois e dois são para todos quatro. Por isso, Aristóteles e o averroísmo acreditaram que havia um único nós ou intelecto no Universo, que todos éramos, enquanto inteligentes, uma só inteligência. O que nos individualiza está por trás dela. Mas agora não vamos pinçar tão difícil questão. Baste o dito para sugerir que em vão pretenderá a inteligência lutar num match de convicção com as crenças irracionais, habituais. Quando um cientista sustenta suas ideias com uma fé semelhante à fé vital, duvidem de sua ciência. Numa obra de Baroja, um personagem diz ao outro: “Este homem acredita na anarquia como na Virgem del Pilar”, ao que comenta um terceiro: “Em tudo o que se acredita se acredita de modo igual”.

De modo idêntico, sempre a fome e a sede de comer e beber serão psicologicamente mais fortes, terão mais energia bruta psíquica que a fome e sede de justiça. Quando mais elevada é uma atividade num organismo, é menos vigorosa, menos estável e eficiente. As funções vegetativas falham menos que as sensitivas, e estas, menos que as voluntárias e reflexivas. Como dizem os biólogos, as funções ultimamente adquiridas, que são as mais complexas e superiores, são as que primeiro e mais facilmente são perdidas por uma espécie. Em outros termos: o que vale mais é o que está sempre em maior perigo. Num caso de conflito, de depressão, de apaixonamento, sempre estamos prontos a deixar de ser inteligentes. Dir-se-ia que levamos a inteligência presa com um alfinete. Ou em outras palavras: o mais inteligente o é (…) por instantes. E o mesmo poderíamos dizer do sentido moral e do gosto estético. Sempre no homem, por sua própria essência, o superior é menos eficaz que o inferior, menos firme, menos impositivo.

Com essa ideia teria de entrar na compreensão da histórica. O superior, para realizar-se na história, tem de esperar a que o inferior lhe ofereça espaço e ocasião. Isto é, que o inferior é o encarregado de realizar o superior – empresta-lhe sua força cega, mas incomparável. Por isso, a razão não deve ser orgulhosa e deve atender, cuidar as potências irracionais. A ideia não pode lutar frente a frente com o instinto; tem, pouco a pouco, insinuando-se, de domesticá-lo, conquistá-lo, encantá-lo, não como Hércules, com os punhos – que não tem –, mas com irreal música, como Orfeu seduzia as feras. A ideia é… Feminina e usa a tática imortal da feminidade, que não busca impor-se por imposição, como o homem, mas passiva e atmosfericamente. A mulher atua com um doce e aparente não atuar, suportando, cedendo; como Hebbel dizia: “Nela o fazer é padecer” (…). Assim, a ideia (…).

Eis aqui por que, túrgida de razões, agora vagamente só apontadas, eu prefiro que se aproxime o curioso à filosofia sem toma-la muito a sério, ou melhor, com o ânimo de espírito que leva ao exercitar um esporte e ocupar-se num jogo. Diante do fundamental viver, a teoria é jogo, não é coisa terrível, grave, formal.

O que eu quero dizer é o seguinte: que o homem é como um brinquedo na mão de Deus, e que isso, poder ser jogo, é precisamente e em verdade o melhor nele. Portanto, toda a gente, homem ou mulher, deve aspirar a esse fim e fazer dos mais belos jogos o verdadeiro conteúdo de sua vida – contrariamente à opinião que agora domina. Jogo, brincadeira, cultura, afirmamos, são o mais sério para nós, os homens. Eis aqui, senhores, mais uma frivolidade que eu atiro ao vento.

O grave é que se eu agora a pronunciei, não sou eu quem a pensou e a dissera e escrevera. As palavras que li e que começam: “O que eu quero dizer é o seguinte: que o homem é um brinquedo na mão de Deus…” são nada menos que de Platão. E não são escritas à toa e como de passagem, mas poucos parágrafos depois de ter dito que o tema sobre que vai falar é daqueles que exigem máxima atenção quando vai tratá-los de um homem que, como ele, chegou à velhice. É um dos poucos lugares em que Platão, oculto quase sempre por trás de seu próprio texto, entreabre as linhas luminosas de seu escrito, como uma cortina de fios iridescentes, e nos deixa ver sua nobre figura privada. Essas palavras são do livro VII de As leis – a derradeira e inacabada obra de Platão, debruçado sobre a qual o surpreendeu a amiga morte, levando-o para sempre em sua mão imortal.

E mais ainda: diz Platão tal coisa anunciando antes, com rara insistência, que vai determinar qual é o estado de ânimo, a disposição, o tom sentimental, diríamos hoje, em que há de fundar-se cada vida enquanto culta. Ainda que os gregos ignoraram quase tudo, e logo veremos por que, o que chamamos “psicologia”, entrevê aqui Platão, genialmente, uma das mais recentes verificações psicológicas, consoante a qual toda nossa vida íntima brota, como de uma semente, de uma tonalidade emotiva fundamental que em cada sujeito

  • diversa e constitui a base do caráter. Cada uma de nossas reações concretas
  • determinada por esse fundo sentimental – que em uns é melancolia, em outros exultação, em uns depressão, em outros segurança.

Ora, o homem para fazer-se culto tem de proporcionar-se um ânimo emotivo adequado – que será para sua vida, com ribeirinha comparação, o que é a quilha que para a nave começa por colocar o carpinteiro de ribeira. Ele, Platão, ao escrever esse livro se vê a si mesmo – diz-nos – como esse carpinteiro de ribeira, como esse naupegós. A quilha da cultura, o estado de ânimo que a leva e equilibra é essa séria brincadeira, essa brincadeira formal que se parece ao jogo violento, ao esporte, entendendo por tal, como é sabido que eu entendo, um esforço, mas um esforço que, em oposição ao trabalho não nos é imposto, nem

  • utilitário nem é remunerado, mas um esforço espontâneo, luxuoso, que fazemos por gosto de fazê-lo, que se satisfaz a si mesmo (…)

A cultura brota e vive, floresce e frutifica em ânimo espiritual bem-humorado – na jovialidade. A seriedade virá depois, quando tenhamos atingido a cultura ou a forma dela a que nos referimos – assim, agora, a filosofia. Mas, de qualquer forma, jovialidade. Depois de tudo, não é estado de ânimo que possa parecer menosprezável; lembram os senhores que a jovialidade não é senão o estado de ânimo em que costuma estar Jove – Júpiter. Ao educar em nós a jovialidade, o fazemos em imitação de Jove olímpico.

E assim Platão em suas últimas obras, às vezes se compraz em jogar do vocábulo com as duas palavras que em grego soam quase o mesmo, paideia – cultura – e paidiá – criancice, jogo, brincadeira, jovialidade. É a ironia de seu mestre, Sócrates, que refloresce na senectude de Platão. E essa ironia, esse equívoco eficacíssimo produziu os mais irônicos efeitos, e assim, ocorre que nos códices aonde chegaram a nós esses livros derradeiros de Platão se vê que o copista não sabia quando escrever paideia, “cultura”, e quando devia escrever paidiá, “brincadeira”. Convida-se, pois, tão apenas para um jogo rigoroso, porquanto o homem é no jogo onde é mais rigoroso. Esse jovial rigor intelectual

  • a teoria, e, como disse eu, a filosofia, que é uma pobrezinha coisa, não é senão teoria.

Mas já o sabemos também por Fausto:

Cinza, caro amigo, é toda teoria,

E verde a árvore áurea da vida.

O cinza é o ascetismo da cor. Tal é seu valor simbólico na linguagem usual, e a esse símbolo alude Goethe. Ser cinza é o máximo que a cor pode fazer quando quer renunciar a ser cor; por outro lado, a vida é uma árvore verde – o que é uma extravagância – e ainda essa árvore verde da vida ocorre ser dourada, o que é uma extravagância ainda maior. Essa elegante vontade de apegar-se o cinza diante da maravilhosa e contraditória extravagância cromática da vida nos leva a teorizar. Na teoria, permutamos a realidade por seu espectro, que são os conceitos. Em vez de vivê-la, a pensamos. Quem sabe, contudo, se sob esse aparente ascetismo e distanciamento da vida, que é o estrito pensar, não se oculta uma máxima forma de vitalidade, seu luxo supremo! Quem sabe se pensar na vida não é acrescentar ao engenho de vivê-la, um magnífico afã de sobrevivê-la!

*ORTEGA Y GASSET, José. O que é filosofia? In: Ortega y Gasset – Coleção Educadores. Tradução: Juan Escámez Sánchez. MEC | Fundação Joaquim Nabuco/Editora Massangana

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