LINGUAGEM, CONHECIMENTO, PENSAMENTO

        A função do nome se limita sempre a ressaltar um aspecto particular de uma coisa, e é precisamente desta restrição e desta limitação que depende seu valor.

Não é função do nome referir-se exaustivamente a uma situação concreta, mas apenas destacar e mencionar certo aspecto. O isolamento deste aspecto não é um ato negativo, mas positivo, porque no ato de denominação escolhemos, no meio da multiplicidade e difusão dos nossos dados sensoriais, certos centros fixos de percepção que não são os mesmos do pensamento lógico ou científico.(E. Cassirer)

        Apesar de haver muitos modos de conhecer o mundo, através do mito, da arte, da ciência, cada um deles com sua linguagem específica, é através da linguagem verbal que melhor se manifesta o pensamento abstrato que faz uso de ideias e conceitos gerais. Por isso, vamos começar nossa discussão exatamente caracterizando

a linguagem verbal.

1.        A LINGUAGEM COMO ATIVIDADE HUMANA

        Considerando o homem um ser que fala e a palavra a senha de entrada no mundo humano, vamos examinar mais profundamente o que vem a ser a linguagem especificamente humana.

        A linguagem é um sistema simbólico. O homem é o único animal capaz de criar símbolos, isto é, signos arbitrários em relação ao objeto que representam e, por isso mesmo, convencionais, ou seja, dependentes de aceitação social. Tomemos, por exemplo, a palavra casa. Não há nada no som nem na forma escrita que nos remeta ao objeto por ela representado (cada casa que, concretamente, existe em nossas ruas). Designar esse objeto pela palavra casa, então, é um ato arbitrário. A partir do momento em que não há relação alguma entre o signo casa e o objeto por ele representado, necessitamos de uma convenção aceita pela sociedade, de que aquele signo  representa aquele objeto. É só a partir dessa aceitação que poderemos nos comunicar, sabendo que, em todas as vezes que usarmos (Charles M. Schulz, And a Woodstocts o a Birch Tree.) a palavra casa, nosso interlocutor entenderá o que queremos dizer. A linguagem, portanto, é um sistema de representações aceitas por um grupo social, que possibilita a comunicação entre os integrantes desse mesmo grupo.

        Entretanto, na medida em que esse laço entre representação e objeto representado é arbitrário, ele é, necessariamente, uma construção da razão, isto é, uma invenção do sujeito para poder se aproximar da realidade. A linguagem, portanto, é produto da razão e só pode existir onde há racionalidade.

        A linguagem é, assim, um dos principais instrumentos na formação do mundo cultural, pois é ela que nos permite transcender a nossa experiência. No momento em que damos nome a qualquer objeto da natureza, nós o individuamos, o diferenciamos do resto que o cerca; ele passa a existir para a nossa consciência. Com esse simples ato de nomear, distanciamo-nos da inteligência concreta animal, limitada ao aqui e agora, e entramos no mundo do simbólico. O nome é símbolo dos objetos que existem no mundo natural e das entidades abstratas que só têm existência no nosso pensamento (por exemplo, ações, estados ou qualidades como tristeza, beleza, liberdade).

O nome tem a capacidade de tornar presente para a nossa consciência o objeto que está longe de nós.

        O nome, ou a palavra, retém na nossa memória, enquanto ideia, aquilo que já não está ao alcance dos nossos sentidos: o cheiro do mar, o perfume do jasmim  numa noite de verão, o toque da mão da pessoa amada; o som da voz do pai; o rosto de um amigo querido.

O simples pronunciar de uma palavra representa, isto é, torna  presente à nossa consciência o objeto a que ela se refere. Não precisamos mais da existência física das coisas:criamos, através da linguagem, um mundo estáveis de ideias que nos permite lembrar o que já foi e projetar o que será. Assim é instaurada a temporalidade no existir humano. Pela linguagem, o homem deixa de reagir somente ao presente, ao imediato; passa a poder pensar o passado e o futuro e, com isso, a construir o seu projeto de vida.

        Por transcender a situação concreta, o fluir contínuo da vida, o mundo criado pela linguagem se apresenta mais estável e sofre mudanças mais lentas do que o mundo natural. Pelas palavras, podemos transmitir o conhecimento acumulado por uma pessoa ou sociedade. Podemos passar adiante esta  construção da razão que se chama cultura.

2.        ESTRUTURAÇÃO DA LINGUAGEM

        Toda linguagem é um sistema de signos. O signo é uma coisa que está em lugar de outra, sob algum aspecto2. Por exemplo, o gesto de levantar o braço e abanar a mão pode estar no lugar de um cumprimento ou de um adeus; ele é signo dessas duas coisas. Os números substituem as quantidades reais de objetos. Elefante está escrito aqui no lugar do animal.

Tipos de signo

        Ora, se o signo está no lugar do objeto que ele representa, essa representação pode assumir aspectos variados, dependendo do tipo de relação que o signo  mantém com o objeto representado.

       Se a RELAÇÃO É DE SEMELHANÇA, temos um signo do tipo ÍCONE. Exemplos: um desenho que tenha semelhança com o objeto representado; uma fotografia; uma palavra onomatopaica (cocorocó, bem-te-vi etc.).

        Se a RELAÇÃO É DE CAUSA E EFEITO, uma relação que afeta a existência do objeto ou é por ela afetada, temos um signo do tipo ÍNDICE. Exemplos: as nuvens são signos de chuva (são causa da chuva); o chão molhado também pode ser signo de chuva (é efeito da chuva); a fumaça ou o cheiro de queimado são signos de fogo; os

sinais matemáticos +, -, x e * são signos das operações que devem ser efetuadas; a febre é signo de doença. Todos esses signos indicam, apontam para o objeto representado.

        Se a RELAÇÃO É ARBITRÁRIA, regida simplesmente por convenção, temos o SÍMBOLO, que já foi discutido no início deste capítulo. Além das palavras, podemos citar outros exemplos de símbolos: a cor preta, nas culturas ocidentais, é símbolo de luto, pesar, enquanto o branco o é na China e no Japão; o branco é também  símbolo de pureza; o uso da aliança no dedo anular da mão esquerda simboliza a condição de casado. Esses signos são aceitos pela sociedade como representação dos objetos luto, pureza e casamento e só se mantêm por convenção, hábito ou tradição. 2 p p Peirce, Sernüitica. p. 46.

        Podemos ver, assim, que só o homem é capaz de estabelecer signos arbitrários, regidos por convenções sociais. Por isso é que dizemos que o mundo humano é simbólico.

        OS OUTROS ANIMAIS SÃO CAPAZES DE ENTENDER ÍCONES E ÍNDICES. O cachorro, por exemplo, utiliza o signo indicial cheiro. Ele é capaz de reconhecer o cheiro  do dono numa roupa, num lugar. E o cheiro indica a presença do objeto (o dono) que ele procura. Ele reconhece, ainda, o tom de voz, as ações que indicam passeio,  castigo ou a hora de comer.

        Assim, o signo relaciona-se com o objeto de forma a dar origem em nossa mente a um segundo signo que explica o primeiro. Exemplificando: para explicar o  signo casa a uma criança, podemos fazer o desenho:

        O desenho, nesse caso, é o segundo signo que explica o primeiro, pela semelhança com o objeto representado. Um sinônimo também explica um signo. Continuando a usar o exemplo “casa”, poderíamos explicá-lo através da palavra lar. Este segundo signo (lar) explica o primeiro em sentido bastante específico de “minha casa  ou “lugar onde moro e considero meu refúgio”. Essa explicação é diferente da oferecida pelo desenho, que se refere mais à arquitetura que à relação afetiva que mantemos com o lugar onde moramos.

ELEMENTOS DA LINGUAGEM

        Precisamente por ser um sistema de signos, toda linguagem possui um repertório, ou seja, uma relação dos signos que vão compô-la. Por exemplo, um dicionário da língua portuguesa relaciona signos que pertencem a essa língua. A linguagem musical tonal, para compor seu repertório, seleciona, dentre todos os sons possíveis, alguns, denominados dó, ré, mi. fá. sol, lá, si, acrescidos do sustenido ou do bemol (que são meios-tons).

        Além do repertório, também é preciso que se estabeleçam as regras de combinação desses signos. Quais podemos usar juntos, quais não podemos? Continuando com os exemplos semânticos, não podemos combinar signos que tenham sentidos opostos: subir/ descer, nascer/morrer etc. Não podemos dizer “Ele subiu descendo as escadas, mas podemos dizer “Ele subiu correndo as escadas’.

        Como último passo, A LINGUAGEM DEVE ESTABELECER AS REGRAS DE USO DOS SIGNOS. Em que ocasiões devemos empregar Vossa Senhoria? Quando e como usar a cor preta como luto?

        Só quando conhecemos o repertório de signos, as regras de combinação e as regras de uso desses signos é que podemos dizer que dominamos uma linguagem.

3.        TIPOS DE LINGUAGEM

        Apesar de, até este ponto, termos falado mais da linguagem verbal (línguas. como sao conhecidas), há vários tipos de linguagem criados pelo homem, que vão das linguagens matemáticas, linguagens de computador, passam pelas línguas diversas, pelas linguagens artísticas (arquitetônica, musical, pictórica, escultórica, teatral, cinematográfica etc.) e chegam às linguagens gestuais, da moda, espaciais etc.

        Será que todas essas linguagens se estruturam da mesma forma? Será que o repertório de signos e as regras de combinação e de uso desses signos são similares?

        Logo à primeira vista, fica claro que algumas dessas linguagens têm estrutura mais flexível que outras.

        Tomando a moda como exemplo de linguagem flexível, percebemos que, através dos tempos e com muito maior rapidez do que as palavras e os sons de uma língua,  é alterado o seu repertório de signos. Há signos que caem em desuso, como, por exemplo, o corpinho (anterior ao sutiã), e há outros que são introduzidos a cada nova  estação, como o biquíni fio dental, surgido no verão de 86. Quanto às regras de combinação, elas também são variáveis. Hoje é moda combinar calças compridas e vestidos  ou túnicas retas, ou, ainda, blusas diferentes, umas sobre as outras. Isso era

inadmissível há algum tempo. Em relação ao uso, podemos dizer o mesmo:

hoje, o jeans tem entrada franca em festas e até em casamentos, que já exigiram roupas bastante formais.

        Essa flexibilidade característica da linguagem da moda decorre do fato de que ela não se estabelece, como as línguas faladas, por meio de um processo de cristalização social. Ao contrário, ela é ditada por um pequeno grupo de costureiros, desenhistas e editores de moda que, por estarmos numa sociedade capitalista, incentivam mudanças que promovam maior consumo.

        No outro pólo, podemos usar como exemplo as linguagens de computador, que são altamente estruturadas e, portanto, bastante inflexíveis.

        Cada uma dessas linguagens, seja Assembler, basic, Fortran ou Cobol, tem um número muito limitado de signos e de regras de combinação, e o computador só  responderá dentro dos limites da sua linguagem. Assim, por exemplo, se ao digitar uma instrução como copv (“copie”) errarmos na ortografia e escrevermos copi, o computador imediatamente parará, pois seu repertório não inclui esse signo.

        As linguagens artísticas constituem um meio-termo. Se, por um lado, respeitam a especificidade de cada campo artístico, por outro tendem a explorar esse campo e as possibilidades de cada linguagem até seu limite máximo. E é exatamente a essas explorações que devemos o desenvolvimento e a criação de novos estilos  e novas técnicas. Por exemplo, na exposição A cor Como linguagem (MASP, 1975), na qual estavam representadas várias tendências da pintura contemporânea que utilizam  a cor, e não o desenho, como linguagem específica da pintura, surpreendemo-nos ao deparar com uma tela totalmente branca. A primeira vista, parecia uma tela em branco,  antes de ser pintada. Prestando mais atenção, percebemos que ela havia sido pintada de branco. Desconcertados, nos perguntamos o que aquilo poderia significar dentro  daquela exposição.

O        que significa o branco em termos de cor? Significa a impressão produzida nos órgãos visuais pelos raios da luz não-decomposta. O branco é anterior às outras  cores e contém a possibilidade de todas elas. A tela branca, portanto, dentro da proposta da cor como linguagem, significava, representava exatamente essa possibilidade  de todas as cores. No caso, o artista levou ao limite extremo a experimentação da cor como linguagem.

4.        LINGUAGEM, PENSAMENTO E CULTURA

        Assim como existem diversos tipos de linguagem, existem diversos tipos de pensamento. Há o pensamento concreto, que se forma a partir da percepção, ou seja, da representação de objetos reais, e é imediato, sensível e intuitivo; e o pensamento abstrato, que estabelece relações (não-perceptiveis), que cria os conceitos e as noções gerais e abstratas, é mediato (precisa da mediação da linguagem) e racional.

        Por exemplo, quando percebemos algumas laranjas sobre a fruteira, percebemo-las num espaço dado, numa determinada disposição, cor e odor. Essa percepção, portanto, é concreta, sensível (as laranjas estão ali), imediata (dispensa raciocínio) é individual (é daquelas laranjas).

        Já quando o matemático soma 4 + 4, ele está lidando com uma noção geral de quantidade. Não encontramos o número 4 na natureza. Encontramos uma certa quantidade de laranjas, abacates, meninos etc. que representamos abstratamente pelos números, que são construção da nossa razão (ver Capítulo10 – Teoria do conhecimento).

        Para cada tipo de pensamento há um tipo de linguagem adequado. Vejamos.

        Para o pensamento abstrato e conceitual, que se afasta do sensível, do individual, a língua se apresenta como condição necessária, por ser um sistema de signos simbólicos que, como já dissemos, nos permite transcender o dado vivido e construir um mundo de ideias.

        Ora, cada língua possui uma estruturação própria em nível de repertório e de regras de combinação e de uso. Isso quer dizer que cada língua organiza a realidade  de modo diferente de outra, pois estabelece repertório e regras diferentes.

        Exemplo clássico é a língua esquimó, que tem seis nomes diferentes para designar vários estados da neve. Em português, temos apenas a palavra neve. Outras alternativas não são previstas na língua portuguesa. O importante, entretanto, não é o fato de uma língua ter maior número de palavras para “recortar”3 a realidade, mas saber que a existência dessas palavras leva à percepção da realidade  de modo diferente. O esquimó percebe os diferentes estados da neve, e nós percebemos somente se há neve ou não.

À linguagem elege determinadas partes da realidade para nomear. Nesse sentido, ela “recorta” a realidade.

        Assim, podemos dizer que a estruturação da língua influencia a percepção da realidade e o nível de abstração e generalização do pensamento.

        Por outro lado, outros tipos de linguagem, em especial as linguagens artísticas, são mais adequados ao pensamento concreto, como veremos na Unidade Vi –

Estética, quando tratarmos da arte como forma de pensamento e conhecimento. O pintor, por exemplo, está mais ligado ao mundo visual das cores e formas do que ao  mundo abstrato dos conceitos. Podemos adiantar que, na medida em que as linguagens artísticas são mais flexíveis que as línguas, elas necessariamente se estruturam  e se reestruturam em função de projetos específicos. Quando a pintura tinha por função retratar ou imitar a realidade, vimos surgir a linguagem do figurativismo realista, que utiliza recursos variados, como a perspectiva, para criar a ilusão de profundidade. Quando a máquina fotográfica foi inventada e passou a dar conta dessa retratação da realidade de forma mais eficiente e rápida, a pintura precisou encontrar outra função e, consequentemente, outra linguagem.

        Além do pensamento, a linguagem também mantém estreita relação com a cultura. Se, por um lado, as várias linguagens fixam e passam adiante os produtos do pensamento do homem sob a forma de ciência, técnicas e artes, elas também sofrem a influência das modificações culturais. Nas línguas há modificações de repertório  e semânticas a partir das novas descobertas e do desenvolvimento da técnica. Nas artes, as reestruturações da linguagem respondem a mudanças de valores, de anseios  e de buscas no seio da cultura de cada sociedade.

Textos complementares

As línguas naturais e a cultura

        Se, em face do resto da cultura, “uma língua é o seu resultado ou súmula; o meio para ela operar; a condição para ela subsistir” (Mattoso Câmara, 1969, 22), cada língua natural é um microcosmo do macrocosmo que é o total da cultura dessa sociedade. Nos termos de Benjamim L. Whorf, cada língua “recorta a realidade” de um  modo particular. A “tese de Whotf”,como é conhecida, contraria a impressão ingênua de que as línguas seriam meras variações de expressões que remeteriam a significados- universalmente válidos e estáveis (Peterfalvi, 1970. 98). Assim, as línguas naturais não são um decalque nem uma rotulação da realidade; elas delimitam aspectos de experiências vividas por cada povo, e estas experiências, como as línguas, não coincidem, necessariamente, de uma região para outra.

        O indivíduo que guia um automóvel é chamado, em francês, de chauffeur, em espanhol de concluctor, em inglês de driver, em português de motorista;  isto significa que os franceses associam tal indivíduo com a sua atividade de aquecer o motor para pôr a máquina em movimento; os espanhóis e ingleses o associam com o ato de dirigir o carro, enquanto que nós, falantes do português, o associamos diretamente com o motor do veículo. Trata-se de uma mesma atividade, mas a análise  que cada língua pratica nessa realidade resulta na apreensão de um aspecto particular de uma série de operações, e esse aspecto focalizado difere de uma para outra comunidade de falantes. (Edward Lopes, Fundamentos cio linguístico contemporânea, p. 21.) O nascimento de uma linguagem

        Esses caçadores de imagens colocavam suas câmaras fixas num determinado  lugar e “registravam o que estava na frente. Também quando teve início a ficção,  a câmara ficava fixa e registrava a cena. Acabada a cena, seguia-se outra. O filme era uma sucessão de “quadros”, entrecortados por letreiros que apresentavam diálogos e davam outras informações que a tosca linguagem cinematográfica não conseguia fornecer. A relação entre a tela e o espectador era a mesma que no teatro. A câmera filmava uma cena como se ela estivesse ocupando uma poltrona na plateia de um teatro. Aos poucos, a linguagem cinematográfica foi-se construindo e é provavelmente aos cineastas americanos que se deve a maior contribuição para a formação desta linguagem cujas bases foram lançadas até mais ou menos 1915. Uma linguagem, evidentemente, não se desenvolve em abstrato, mas em função de um projeto. O projeto, mesmo que implícito, era contar estórias. O cinema tornava-se como que o herdeiro do folhetim do século XIX, que abastecia amplas camadas de leitores, e estava se preparando para se tornar o grande contador de estórias da primeira metade do século XX. A linguagem desenvolveu-se, portanto, para tornar o cinema apto a contar estórias; outras opções teriam sido possíveis, que o cinema desenvolvesse uma linguagem científica ou ensaistica, mas foi a linguagem da ficção que predominou.

        Os passos fundamentais para a elaboração dessa linguagem foram a criação de estruturas narrativas e a relação com o espaço. Inicialmente o cinema só conseguia dizer: acontece isto (primeiro quadro), e depois: acontece aquilo (segundo quadro), e assim por diante. Um salto qualitativo é dado quando o cinema deixa de relatar cenas que se sucedem no tempo e consegue dizer “enquanto isso”. por exemplo, uma perseguição: vêem-se alternadamente o perseguidore o perseguido; sabemos que, enquanto vemos o perseguido, o perseguidor que não vemos continua a correr, e vice-versa. Óbvio, para hoje. Na época, a elaboração de uma estrutura narrativa como esta era uma conquista nada óbvia. Num dos primeiros filmes de Méliês, vemos uma estrada, uma casa, um carro; o carro se desgoverna e atravessa a parede da casa. No quadro seguinte, vemos uma sala de jantar, uma família almoçando tranquilamente; de repente, o carro irrompe na sala pela parede. É o mesmo acidente que já tínhamos visto de fora no quadro anterior algum tempo antes. Como se o filme tivesse recuado no empo. Hoje, organizar-se-ia a narração colocando o exterior: a estrada, a casa, o carro andando; o interior: a família almoçando; voltar-se-ia ao exterior: o início do acidente, o carro entra na parede; ao interior: fim do acidente, o carro acaba de entrar na sala. De forma a ter um acidente que ocorra num momento único, visto de fora e de dentro. Mas foi necessário criar esta linguagem aos poucos. (Jean Claude Bernardet, O que é cinema,  São Paulo. Brasiliense, 1983, p.32-34,)




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